Amor é fogo que arde sem se ver; é ferida que dói e não se sente; é um contentamento descontente; é dor que desatina sem doer;
é um não querer mais que bem querer; é solitário andar por entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é cuidar que se ganha em se perder;
é querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Busque Amor novas artes, novo engenho
Busque Amor novas artes, novo engenho Pera matar-me, e novas esquivanças, Que não pode tirar-me as esperanças, Que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho! Vede que perigosas seguranças! Que não temo contrastes nem mudanças, Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, enquanto não pode haver desgosto Onde esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não se vê,
Que dias há que na alma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como e dói não sei porquê.
Transforma-se o amador na cousa amada
Transforma-se o amador na cousa amada, Por virtude do muito imaginar; Não tenho logo mais que desejar, Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada, Que mais deseja o corpo de alcançar? Em si sómente pode descansar, Pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia, Que, como o acidente em seu sujeito, Assim co'a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia; [E] o vivo e puro amor de que sou feito, Como matéria simples busca a forma.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança; Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já como soía.
Amor, que o gesto humano na alma escreve
Amor, que o gesto humano na alma escreve, Vivas faíscas me mostrou um dia, Donde um puro cristal se derretia Por entre vivas rosas e alva neve.
A vista, que em si mesma não se atreve, Por se certificar do que ali via, Foi convertida em fonte, que fazia A dor ao sofrimento doce e leve.
Jura Amor que brandura de vontade Causa o primeiro efeito; o pensamento Endoudece, se cuida que é verdade.
Olhai como Amor gera, num momento De lágrimas de honesta piedade, Lágrimas de imortal contentamento.
Eu cantarei de amor tão docemente
Eu cantarei de amor tão docemente, Por uns termos em si tão concertados, Que dois mil acidentes namorados Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente, Pintando mil segredos delicados, Brandas iras, suspiros magoados, Temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprezo honesto De vossa vista branda e rigorosa, Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, pera cantar de vosso gesto A composição alta e milagrosa Aqui falta saber, engenho e arte.
Que me quereis, perpétuas saudades?
Que me quereis, perpétuas saudades? Com que esperança inda me enganais? Que o tempo que se vai não torna mais, E se torna, não tornam as idades.
Razão é já, ó anos, que vos vades, Porque estes tão ligeiros que passais, Nem todos pera um gosto são iguais, Nem sempre são conformes as vontades.
Aquilo a que já quis é tão mudado, Que quase é outra cousa, porque os dias Têm o primeiro gosto já danado.
Esperanças de novas alegrias Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado, Que do contentamento são espias.
Se as penas com que Amor tão mal me trata
Se as penas com que Amor tão mal me trata Permitirem que eu tanto viva delas, Que veja escuro o lume das estrelas, Em cuja vista o meu se acende e mata;
E se o tempo, que tudo desbarata Secar as frescas rosas sem colhê-las, Mostrando a linda cor das tranças belas Mudada de ouro fino em bela prata;
Vereis, Senhora, então também mudado O pensamento e aspereza vossa, Quando não sirva já sua mudança.
Suspirareis então pelo passado, Em tempo quando executar-se possa Em vosso arrepender minha vingança.
Vencido está de amor
Vencido está de amor Meu pensamento O mais que pode ser Vencida a vida, Sujeita a vos servir e Instituída, Oferecendo tudo A vosso intento.
Contente deste bem, Louva o momento Outra vez renovar Tão bem perdida; A causa que me guia A tal ferida, Ou hora em que se viu Seu perdimento.
Mil vezes desejando Está segura Com essa pretensão Nesta empresa, Tão estranha, tão doce, Honrosa e alta
Voltando só por vós Outra ventura, Jurando não seguir Rara firmeza, Sem ser no vosso amor Achado em falta.
Se pena por amar-vos se merece
Se pena por amar-vos se merece, Quem dela livre está? ou quem isento? Que alma, que razão, que entendimento Em ver-vos se não rende e obedece?
Que mor glória na vida se oferece Que ocupar-se em vós o pensamento? Toda a pena cruel, todo o tormento Em ver-vos se não sente, mas esquece.
Mas se merece pena quem amando Contínuo vos está, se vos ofende, O mundo matareis, que todo é vosso.
Em mim, Senhora, podeis ir começando, Que claro se conhece e bem se entende Amar-vos quanto devo e quanto posso.
Sempre a Razão vencida foi de Amor
Sempre a Razão vencida foi de Amor; Mas, porque assim o pedia o coração, Quis Amor ser vencido da Razão. Ora que caso pode haver maior!
Novo modo de morte e nova dor! Estranheza de grande admiração, Que perde suas forças a afeição, Por que não perca a pena o seu rigor.
Pois nunca houve fraqueza no querer, Mas antes muito mais se esforça assim Um contrário com outro por vencer.
Mas a Razão, que a luta vence, enfim, Não creio que é Razão; mas há-de ser Inclinação que eu tenho contra mim.
Quem diz que Amor é falso ou enganoso
Quem diz que Amor é falso ou enganoso, Ligeiro, ingrato, vão desconhecido, Sem falta lhe terá bem merecido Que lhe seja cruel ou rigoroso.
Amor é brando, é doce, e é piedoso. Quem o contrário diz não seja crido; Seja por cego e apaixonado tido, E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.
Se males faz Amor em mim se vêem; Em mim mostrando todo o seu rigor, Ao mundo quis mostrar quanto podia.
Mas todas suas iras são de Amor; Todos os seus males são um bem, Que eu por todo outro bem não trocaria.
Erros meus, má fortuna, amor ardente
Erros meus, má fortuna, amor ardente Em minha perdição se conjuraram; Os erros e a fortuna sobejaram, Que pera mim bastava amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente A grande dor das cousas que passaram, Que as magoadas iras me ensinaram A não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos; Dei causa [a] que a Fortuna castigasse As minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos. Oh! quem tanto pudesse, que fartasse Este meu duro Génio de vinganças!